CANTIGAS DE NINAR
Quando pequenos, nós que nascemos dos anos 70 pra baixo, obedecer a ordem dos pais de “é hora de dormir” era quase que automática. Por outro lado, as canções de ninar – nada amigáveis – não colaboravam com as necessidades paternas ou maternas. Alguns pais, como o meu Waldo Cury, preferiam cantar ou tocar na vitrola outras músicas que curtiam para fazer os filhos dormirem. Lembro muito de um álbum de músicas do Ary Barroso, interpretadas pelo Orlando Silva. E todas as noites eu pedia ao papai pra ouvir esse disco. E também recordo que elegi a música “Curare” como a minha cantiga de adormecer. A frase do verso inicial era esta, que ainda guardo na memória. “Você tem boniteza e a natureza foi quem agiu. Com esses olhos de índia, curare no corpo que é bem Brasil”.
Nessa época, ao embalar os filhos com as tradicionais cantigas de ninar, pais e mães faziam mágica para tornar menos estranhos os personagens que elas carregam. “Nana neném que a cuca vem pegar.” É a cantiga de uma tal de Cuca, que na lenda é uma mulher velha, maldosa, assustadora, que pode vir pra casa e amedrontar aquela criança teimosa, que desobedece os pais e não quer dormir cedo, ou em certas horas do dia. A sorte foi que, na imaginação de Monteiro Lobato, a Cuca virou um jacaré, macho ou fêmea, de cabelos loiros. E essa simpática versão tornou-se um sucesso no programa Sitio do Pica-pau Amarelo da Rede Globo de 1977 e durou vários anos. A Dona Cuca ganhou até o “Tema da Cuca” (Dori Caymmi, Geraldo Casé), cantado por Cássia Eller. “Cuidado com a Cuca que a cuca te pega. E pega daqui e pega de lá.”
Na linha “bovino bravo” encontra-se “Acalanto”, de 1957, que Dorival Caymmi dedicou à sua filha Nana, trazendo no final um trecho da canção popular do boi. “É tão tarde, a manhã já vem. Todos dormem, a noite também. Só eu velo por você, meu bem. Dorme, anjo, o boi pega neném. Lá no céu deixam de cantar. Os anjinhos foram se deitar. Mamãezinha precisa descansar. Dorme, anjo, papai vai lhe ninar. Boi, boi boi…”.
Criado em São Paulo, com férias cativas na fazenda da família materna em Urupês, interior paulista, meu filho Tom, ao contrário de se assustar com boi da cara preta, só queria dormir depois que fosse, no escuro da noite, ver a vaca preta, que quando percebia os faróis do carro arregalava os olhos, lá no pasto da fazenda.
Os filhos que nasceram nas décadas de 70 e 80 com certeza já ouviram cantigas de ninar com apelos mais leves e dengosos. No entanto, os que vieram ao mundo no meio dos anos 90, tiveram também o privilégio de serem embalados pela transformadora dupla Sandra Perez e Paulo Tatit, da Palavra Cantada. Como aconteceu no álbum “Canções de Ninar” da Palavra Cantada, de 1994, propondo 22 canções pra embalar seu filho (a). Uma obra que traz lindas melodias com letras sensíveis e inteligentes. “Canções de Ninar” ganhou o Prêmio Sharp como melhor CD infantil daquele ano e pode, tranquilamente, representar as melhores cantigas de ninar brasileiras de todos os tempos.
Desse álbum da Palavra Cantada, a minha preferida é “Vagarinho” (Paulo Tatit, Edith Derdik), “Vagarinho, vagarinho, fecha o olho no seu ninho. E o sono vai chegar.”
Começando a brilhante carreira dedicada ao público infantil, Sandra e Paulo convidaram outros grandes cantores e compositores pra cantar junto com eles as “Canções de Ninar”. É de Ná Ozetti a voz que sola “Acalanto pra você” (Ná Ozetti, Neco Prates, Edith Derdick). “Eu canto pra você dormir. A terra gira sem ter fim. O sol se esconde não sei onde. Escurece a noite cresce. Eu canto e você já dormiu.”
E tem poesia concreta e a voz grave de Arnaldo Antunes na canção “Dorme” (Arnaldo Antunes).” Para raio dorme. Temporal, dorme… Travesseiro, dorme. Meu amor, dorme… Luiz Gonzaga, dorme, Luz do sol, dorme…Amanhã, dorme.”
É de bom estribilho, fácil de guardar, a canção “Boa Noite” (Paulo Tatit e Zé Tatit), com uma letra sem pudores, alternando cada verso pra um cantor ou cantora, indo de Ná Ozetti, Sandra Perez, Mônica Salmasso, Geraldo Leite, Paulo Tatit a Pedro Mourão. “Gatinha a mamãe tá tão cansada, vê se dorme hoje toda a madrugada… Brotinho com você não tem problema. Só não dorme quando vamos no cinema… Menininha você me enrola com pergunta. Bando é bando, banda é banda, bunda é bunda…Agora sem nenhuma brincadeira. Vê se dorme e chega de tanta besteira. Mil abraços, mil beijinhos, mil carinhos Durma bem e sonhe com os anjinhos. Boa noite, boa noite.”
É de linda melodia, lindo coro e belas vozes a canção “Meu anjo sim” (Sandra Perez e Zé Tatit) cantada por Sandra Perez, Mônica Salmasso, Paulo Tatit e Rodrigo Rodrigues. “Não sei se tu tens um anjo. Que eu tenho um anjo sim. Meu anjo é um pequenino. Que agora vai dormir.” É de pai criativo a ideia de “Pro nenê nanar” (Paulo Tatit e Zé Tatit), como canta Geraldo Leite. “O que é que um pai pode fazer pro nenê nanar. O que é que o pai pode fazer no meio da noite pro nenê nanar. Venha cá no colo. Pequenina tão manhosa. Que eu te canto a velha bossa nova.”
Quando meu filho Tom nasceu, em 1995, compus pra ele 12 músicas no que chamei de “Manual do Neném”. A canção pra dormir é “Sonho zen”: “Dorme querido, dorme candura. Dorme que a noite vem. Dorme tranquilo, dorme fartura. Dorme num sonho zen.” E eu gostaria muito que esta música fosse uma das faixas do disco da Palavra Cantada.
NOTA 1- Homenagem especial a Zé Tatit, talentoso artista plástico, escritor, compositor e coautor de várias canções da Palavra Cantada, que nos deixou em novembro de 2024.
NOTA 2 – Esta crônica escrita complementa o episódio 102 do podcast do canal Semônica, publicado pelo podcastmais.com.br.
NOTA 3 – Pesquisa histórica, pesquisa musical, texto, voz e canto no podcast por Nando Cury.
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