PRA NÃO VER A HORA PASSAR
O relógio de parede cuco é uma herança de família. Foi nele que aprendi a ler as horas com avô Simão. Recebido como presente de casamento dos meus pais em 1950, ele cantou as horas e meias horas, por anos e anos, na residência deles. Lembrando de sua constante companhia no belo tempo que morei com meus pais, fiz uma canção pra homenageá-lo, chamada A Hera e o Cuco. “No telhado uma hera que era e continua sendo aérea. Na parede um aéreo que anda e continua sendo aéreo. Uma hera que era, e continua sendo hera. Um aéreo que o tempo muda. E não deixa de ser.”
Pelo fato de que o canto do cuco dá eco na sala do meu ap., não dou corda e nem balanço mais o pêndulo do cuco para ele funcionar. Porém tive a gratidão de não deixá-lo parado sozinho. Sua casinha, com o morador dentro lógico, está pendurada numa parede da sala, ao lado de dois quadros de pássaros lindamente pintados pelo tio Milton Leão. Exceto pela dúvida que acontecia quando ele repetia o mesmo e único “cuco” para as 12h30, depois 1 hora e 1hora e meia, suas cucadas meiahorísticas me deixavam atento para a passagem e controle do tempo. E raramente eu perdia a hora de algum compromisso ou consulta médica.
Quando se trata de contemporizar acerca das horas que dispomos, algumas pendências não resolvemos, por falta de tempo ou de vontade. E vamos adiando sem previsão de acharmos tempo pra tirá-las da lista. Noutras o tempo demora pra passar. Falo das que antecedem certos eventos marcantes, como encontrar pessoas queridas, amigos e parentes que não conversamos há muito tempo. É nessas horas que ficamos aflitos, nos enchemos de ansiedade, temos até falta de ar. Queremos acelerar o relógio, ver o tempo voando na velocidade da luz, para que cheguem logo.
Há canções que lembram de momentos em que nosso cérebro desencuca, está plenamente seduzido, fora do controle do tempo. Assim ele raciocina em ”Ando meio desligado”, o belo hit dos Mutantes composto por Arnaldo Dias Baptista, Rita Lee Jones e Sergio Baptista. E que faz parte do LP “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado”, de 1970. “Ando meio desligado. Eu nem sinto meus pés no chão. Olho e não vejo nada. Eu só penso se você me quer. Eu nem vejo a hora de lhe dizer. Aquilo tudo que eu decorei. E depois o beijo que eu já sonhei. Você vai sentir, mas…Por favor, não leve a mal. Eu só quero que você me queira. Não leve a mal.”
Outras canções apontam fórmulas ou pedidos para encurtar o tempo de espera. Em 1985, liderado pela voz de Paula Toller, o Kid Abelha lança “Lágrimas e Chuva”. A canção de Leoni, George Israel e Bruno Fortunato aborda o amor desejado e esperado, que leva a noites de insônia, mas carrega a esperança de acontecer algo surpreendente no final. “A noite é muito longa. Eu sou capaz de certas coisas. Que eu não quis fazer. Será que existe alguém no mundo. Eu vou contando as horas. E fico ouvindo passos. Quem sabe o fim da história. De mil e uma noites. De suspense no meu quarto.”
Em “Fico assim sem você”, os momentos de solidão longe da pessoa amada trazem uma reclamação direta ao marcador do tempo: ”Eu não existo longe de você. E a solidão é o meu pior castigo. Eu conto as horas pra poder te ver. Mas o relógio tá de mal comigo. Por quê, por quê?” A canção, de autoria de Abdulah e Cacá Moraes virou um dos sucessos da dupla Claudinho e Bochecha, no LP “Vamos dançar”, de 2002, mesmo ano do acidente que vitimou Claudinho. Dois anos passados e foi a vez de Adriana Calcanhoto fazer sua gravação. Mais um sucesso.
Nando Reis usou o tema na música “Espero que o tempo passe” em 2006, no LP com Os Infernais. A música ficou muito harmoniosa com Nando Reis e Anavitória, na gravação, ao vivo, do ensaio pra recente turnê que fizeram juntos.” Espero que o tempo passe. Espero que a s emana acabe. Pra que eu possa te ver de novo. Espero que o tempo voe. Para que você retorne. Pra que eu possa te abraçar. Te beijar De novo.”
Então, em 2010, Emicida mostrou sua espera impaciente na história cantada em “Não vejo a hora”. E, a exemplo dos Mutantes nos anos 70, ensaiou frases prontas pra dizer na hora do encontro. “Não vejo a hora de te ver de novo. Só pra sentar, conversar. Deixar o tempo passar. Preciso te ver, te contar o que fiz. Enfim, preciso te ter. Eu quero que teu ônibus demore. E quando ele vem. Meus olhos ficam como os do Wall-e (robô do filme da Pixar). Já fico a preparar qual assunto vou falar. Quando te encontrar já sabe …nts. Só pra não faltar nada além do tempo.”
NOTA 1. Sugestão de tema e pesquisa musical por Toni Liutk.
Imagens:
Cabeçalho Estante / Freepik
Capa acervo pessoal
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