VIAGENS DE TREM
Nasci nos tempos que as estradas de ferro, além de transportar cargas em seus vagões, levavam orgulhosamente “carros” de passageiros. Fui viajante da Estrada de Ferro Sorocabana que vinha de São Paulo, passava por Botucatu, minha cidade, e ia até Presidente Venceslau na divisa do Mato Grosso.
Lembro das viagens que, ainda criança, fiz com papai nas minhas férias para Avaré, SP. Tia Zulma e tio Zé me esperavam sorridentes na estação. Eu, todo eufórico, descia com minha mala e papai seguia de trem para Santa Cruz do Rio Pardo, onde trabalhou por dois anos. Foi um trampolim para ele voltar como contador da agência do Banespa de Botucatu, no começo dos anos 60. Depois, em 72, ocorreu a transferência e mudança familiar pra São Paulo, onde papai terminou sua carreira de sucesso na diretoria do banco. Mas, as viagens de carro pra Botucatu, aos finais de semana com meus pais, viraram constantes após nossa ida pra São Paulo. No primeiro ano da faculdade, queria ficar mais tempo na cidade natal, revendo os amigos. Assim, junto com meu primo Cyro Leão, os amigos Keko e João Bosco deixávamos para voltar pra São Paulo no último trem, da meia noite de domingo. Havia um razoável serviço de bordo, com lanches e bebidas tradicionais. Os bancos não eram confortáveis, mas numa certa hora da madruga, embalados pelo barulho monocórdico das rodas do trem por cima dos dormentes de madeira, tatak tatak, tatak, tatak … conseguíamos pegar no sono. Por volta das 6 da manhã, salvo algumas intercorrências na linha, desembarcávamos na Estação Júlio Prestes, em São Paulo.
Keko pegava o ônibus para o Ipiranga, direto pra Faculdade de Psicologia da São Marcos. Enquanto Cyro, João Bosco e eu embarcávamos num outro ônibus, em direção à Avenida Paulista, pras aulas das recém inauguradas Faculdades Objetivo que, da mesma forma que o cursinho, funcionava no velho prédio da Gazeta. Cyro cursava Psicologia. João Bosco e eu o Curso Comunicação Social. A avenida Paulista estava fechada para o trânsito, era um canteiro geral das obras da Linha Verde de outro tipo de trem, o do Metrô.
Apesar de ser admirador de trem, viajei poucas vezes neste transporte. Além destas passagens que contei, destaco o deslumbrante e arrepiante contorno pela Serra do Mar na Ferrovia Paranaguá-Curitiba, nos anos 60.
E, algumas vezes, com amigos e em família, as idas pontuais para tomar o fog londrino e ver a Vila inglesa de Paranapiacaba.
Recordo também de histórias contadas por irmãos mais velhos de amigos de infância, sobre um misterioso trem que levava mochileiros de Corumbá, MT, até a Bolívia. Em 1982, Almir Satter gravou “O Trem do Pantanal”, de Paulo Simões e Geraldo Roca, a mais famosa versão dessa viagem: “Enquanto esse velho trem atravessa o Pantanal. O povo lá em casa espera que eu mande um postal. Dizendo que eu estou muito bem vivo. Rumo a Santa Cruz de La Sierra”.
Muitas canções trazem o imponente personagem trem em seus versos. Fácil de lembrar do “Trem das Onze” (1964) de Adoniram Barbosa, cujo filho único morava na estação de Jaçanã, do extinto Trem da Cantareira, uma linha férrea que ia da zona Norte a Guarulhos. Em 2005, a estória de Adoniran ganhou uma continuação, feita por Tom Zé, em “A volta do Trem das Onze”: “Pra Iracema em Jaçanã. A esperança parece vã. Mas na maloca, Adoniran já se reforça, com tapioca, caldo de rã. E convoca Joca pra derrotar Leviatã e Tio Sam.”
As estações e suas plataformas são pontos de tantas chegadas e partidas. E guardam silenciosas os momentos de encontros e desencontros. Tal qual o caso revelado por Adriana Calcanhoto em “Naquela estação” de João Donato, Caetano Veloso e Ronaldo Bastos (1999): “E agora, tudo bem. Você partiu. Para ver outras paisagens. E o meu coração embora. Finja fazer mil viagens. Fica batendo parado naquela estação.”
Duas viagens de trem, que aparecem em músicas de uma mesma década, podem supostamente ter um ponto em comum. Ou seja, falar de um trem da Central do Brasil, que tinha cor azul e interligava os municípios mineiros de Montes Claros, Monte Azul com Belo Horizonte. E que nas linhas de outro ramal chegava até Pirapora, atravessada pelo Rio São Francisco. No belíssimo álbum Clube da Esquina 1, de 1972, aparece o “Trem Azul” de Lô Borges e Ronaldo Bastos. “Coisas que a gente se esquece de dizer. Frases que o vento vem as vezes me lembrar. Coisas que ficaram muito tempo por dizer. Na canção do vento não se cansam de voar. Você pega o trem azul, o Sol na cabeça. O Sol pega o trem azul, você na cabeça. O Sol na cabeça.”
Em 1977, com “Trem de Pirapora”, Sá e Guarabyra incluem as lembranças do provável trem azul por esta cidade: “O trem de Pirapora já passou por essa ponte. Perdido em Montes Claros. Achado em Belo Horizonte. Pirapora preta, preta, barranqueira. Luz acesa até altas horas da noite.”
Nota 1: Temática ligada ao Episódio 85, Viagens de Trem, do canal Semônica do Podcastmais.com.br
Nota 2: Pesquisa histórica, pesquisa musical e texto por Nando Cury
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