A CAÇAMBA E OS TACOS DE MADEIRA DE LEI
A experiente Cassandra, caçamba de meia idade que pertence à uma construtora especializada em reformas de casas, acaba de receber nova carga, contendo grande quantidade de tacos de madeira de assoalho.
Cassandra :
-“Nossa… é jacarandá puro. Cara, olha as veias da madeira! Sinta o cheiro! Tacos mais antigos, em formato grande. Deixa eu ver… Receberam dupla aplicação de Synteko, aquela marca de verniz dos anos 60. Será que o proprietário não sabe que mandou arrancar jacarandá do chão da casa? É, pelo volume, podem ter vindo de um sobrado. Deixa eu sentir esse aroma de novo. Repare: neste canto há um grupo de tacos mais conservados, que provavelmente sejam de outro cômodo da casa. Uma boa probabilidade é ter vindo de um quarto de hóspedes, pois têm a aparência de pouco pisados.
Aposto 100 kg de cimento fresco que o comandante da obra trocou os tacos de jacarandá por um desses “modernos” pisos de madeira sintética. Gastou uma bela fortuna e não colocou um material de real valor, de lei, como se dizia antigamente. A propósito, com as novas leis ambientais, os restos de madeiras especiais chegam muito raramente por aqui. Por isso, dá muita pena ver madeira nobre neste estado lastimável! Que pena, os tacos foram mal arrancados do chão. Há muitos quebrados e lascados. Com a pressa de fazer logo o serviço, né… realizaram um verdadeiro crime ambiental indoor.”
(Barulho de sensor de ré de caminhão-guincho estacionando):
PiPiPiPiPiPiPiPi…
Cassandra:
– “Eeeeeepa… ele está chegando.”
(Caçamba sendo engatada no caminhão-guincho. Trepidação):
TRUNK…TRRRUUNK… TRANK…TRRUUNK…PLENK
Cassandra:
– “E lá vou eu ajudar a descartar mais uma carga. Difícil aceitar o destino que se dá à algumas boas coisas velhas, já utilizadas. O Zóião, motorista do guincho, geralmente leva os “meus” resíduos para o aterro. Mas, e se hoje ele estiver invocado, porque a noite está mais quente? Ou brigou com a namorada? Ou cismar que o salário tá pequeno? Pode mudar de roteiro, não é mesmo? E jogar este “meu” conteúdo em qualquer viela, riacho ou terreno baldio. Você acha que o Zóião, tem alguma noção do que está levando? Não tem a mínima orientação e nem treinamento, para separar os resíduos sólidos nobres dos não nobres. Lida com os objetos assim, de modo totalmente automático. Parece que tudo o que está aqui dentro é entulho, apenas entulho, material com pouco valor agregado.”
(Freada de caminhão-guincho):
PISSSSSSSSSSSSS
Cassandra:
– “Iiiihhhh, o guincho parou. Final de viagem. Lá se vão os “meus” preciosos tacos, misturados e cobertos por esses elementos sujos de construção. Será que alguém vai perceber que, no meio, há legítimos representantes de pisos de jacarandá, da safra mil, novecentos e cinquenta e pouco? Ha, ha, ha. Duvido. Chega. Já cansei dessa falta de sensibilidade! Sinceramente: não vou mais perder o meu valioso tempo de gestora de resíduos sólidos urbanos, dando uma de arqueóloga. Pra quê?”
NOTA: criação por Nando Cury.
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