Casal sem se falar

DANDO UM TEMPO

Eles já não tinham mais noção de quantas vezes aquela situação se repetia. Em compensação, Virgínia e Sólon já estavam acostumados a dar um jeito de se acomodar em outro lugar, logo que um deles saísse de casa. O acordo de “dar um tempo” não tinha uma duração média estabelecida. Dependia das condições físicas e relativas do que chamavam de adaptabilidade conjugal monotonológica. Circunstância na qual, para nenhum dos dois, existia o definitivo e nem o temporário.

A discussão mais recente do casal teve relação com uma estranha motorista, que pediu para Sólon trocar o pneu do seu carro, justamente na noite em que Virgínia saiu pra jantar com as amigas. Mas, considerando o fato de que foi ele quem teve a iniciativa de contar a história, Virgínia ainda analisava se havia um motivo forte para justificar nova separação. Se fosse estória, com E, ela considerava como uma tentativa boba de provocar ciúmes. No caso de história, com H, faltavam alguns detalhes mais provocativos que ele afirmava que não existiam.

Casal tirando as aliançasÉ que com o passar do tempo, as razões para as brigas tornaram-se mais sofisticadas e o álibi atual escolhido por Sólon parecia manjado. A casa onde os dois moravam foi comprada através de um financiamento de 10 anos, em rígida parceria de equivalência monetária. Ou seja num mês um pagava, no seguinte o outro bancava a prestação mensal. Como o último pagamento havia sido feito por Vírgínia, pelas regras do acordo de “dar um tempo” era Sólon quem, desta vez, deveria procurar um canto pra morar.

Assim, após o ultimato de Virgínia, na noite daquele domingo, Sólon ligou para Denis. O amigo de infância era sua última opção para uma acomodação de emergência. No entanto, não esperava uma resposta tão enfática:

– Sorry, Solito não vai dar. Em hipótese alguma. Os meninos da Geórgia, minha nova mulher, acabaram de se mudar pra cá. Com a bagaça toda.

– Mas Denis, e aquele quartinho do fundo?

– Virou ateliê de pintura da Geórgia.

Descartada a derradeira chance, de menor despesa, Sólon rodou pela cidade. Até se hospedar no quarto de um motel próximo da represa, velho conhecido dos tempos de namoro. Notou o prédio reformado e os quartos com decoração temática do Velho Oeste. Estacionou o carro. Entrou no quarto 22 e trancou a porta. Imediatamente viu-se frente a frente com o Saloom Wild Westxerife, que carregava as balas no seu revólver. Assustado, virou o olhar para uma das garrafas de whisky, expostas na prateleira do bar do saloon. Então, esticou os braços para relaxar e, sem perceber, acionou uma luz vermelha no lado de fora da porta. Meia hora depois, Sólon atendeu a copeira do motel que lhe deixou uma dose dupla daquela bebida, servida numa bandeja com alças de par de botas, Acompanhava um baldinho de gelo, em forma de chapéu de vaqueiro, mais uma porção de azeitonas. Depois da terceira dose, Sólon teve receio de ligar o televisor, que estava fixado abaixo do bebedouro de cavalos. Imaginou que tocando no aparelho a água do bebedouro, em tom esverdeado, cairia sobre seu lençol. Tirou os tênis, a calça jeans e cobriu-se com uma colcha ilustrada de fichas e cartas de baralho. Deitado, de barriga pra cima, teve um pequeno tempo para reparar as belas dançarinas, que dançavam fogosas no teto do quarto, embaladas por um velho pianista.

SaloomFinalmente, caiu em sono profundo. A dançarina de cabelos mais claros veio visita-lo no sonho. Olhava-o de forma magnética e foi se aproximando dele. Sólon sentiu na sua face o calor dos olhos negros de Virgínia. Hipnotizado, tentava sair do saloon, mas a bebida havia tornado suas pernas pesadas, pesadas, …como numa sessão de relaxamento. A dançarina chegou ainda mais perto, mais perto… preparava um ataque romântico. De repente, outro caubói, com nenhuma cara de amigo, invadiu o saloon.

– Corra, é o amante da dançarina. Alertou o pianista, que o agarrou pela camisa e o empurrou pela escada abaixo, na saída lateral do bar.

Ouviu ainda o zumbir de dois tiros passando sobre sua cabeça. Acordou suando muito, com a impressão de estar na cocheira, despertado pela lambida de um cavalo. Na palma da mão esquerda, a prova real da experiência noturna: um pedaço da cinta liga da dançarina, recém caído do teto que desbotava.

Tocando campainhaÀs 8 horas e trinta minutos, desse mesmo dia, Sólon apertou fortemente a campainha da sua casa. Após exatos 5 segundos, apertou novamente, com dois toques curtos. Lembrou, estranhamente, que aquele era o mesmo modo como foi acionado pela misteriosa motorista da troca de pneu.

Aparentando um ar de quem passou uma noite muito confortável e repousante, Virgínia respondeu, de dentro da casa, em voz terna, quase sussurrada:

– E aí caubói, pagou a próxima parcela da casa?

– Já adiantei

– Está com o comprovante bem vísivel?

– Sim, claro como os seus olhos escuros.

– Acorda, entra rápido, senão os vizinhos vão achar que isto aqui tem cara de motel temático.

NOTA: criação por Nando Cury


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