O SOFÁ ABANDONADO

Julinho está totalmente atônito, irreconhecível. A nova dona do seu coração chegou pra ficar. Morávamos juntos naquela casa há muito tempo. Por isso, acompanhei partes importantes da sua história. Eu sempre atento, com meus 4 pés bem plantados no chão de madeira da sala. Com meus assentos, ombros e costas sempre prontos para aconchegá-lo. Como devo chama-lo agora? De ingrato ou de mais um abobalhado nas vertentes da paixão. Rápida, hiper ciente disso, Antonela entrou com toda a autoridade, decidindo tudo. Assim, como uma cachorra que delimita seu território. Ditando regras, gostos, cores, comportamentos:

– “Agora, precisamos mudar esta decoração. Seguir as novas tendências do feng shui lituano. Orientar-nos pelo liut baguá – o mapa meridional dos centros de energia da residência e dos cômodos. Dar função aos cantos. Resgatar as vibrações do mobiliário e de seus acessórios.

Chocado, bem que Julinho buscou argumentos.

– “Antonela, pense bem. É um projeto do João Bartolomeu Torrentano.

– “Olhe querido, Torrentano não tem mais approach.”

– “As combinações já foram capa da Revista Luminosidade e Decoração.”

– “De luz, quero tudo azul aqui. Vamos extirpar cada elemento que traga energia negativa a este lar. Compor os ambientes em diferentes tons de azul, revitalizar as paredes, persianas, luminárias… deixar tudo mais equilibrado.”

– “São peças únicas. Custaram uma pequena fortuna”.

– “Esses sofás cor de vinho são medonhos. Detesto vinho. Nada de misturar peças e bancadas brancas com móveis vinho. É de uma deselegância brutal.”

-“Vinho é a cor do amor, da coragem. Combina com branco que dá segurança, pureza…”. Julinho ainda tentou resistir, quem sabe lembrando alguns dos momentos felizes com a anterior.

-“Uma cor anula a outra. Percebe o engano?”. Bateu firme, finalizando a “conversa”, a irredutível Antonela.

Hoje, de manhã, após Julinho sair pro supermercado, Antonela iniciou as providências decorativas. Logo me separou da minha família. Papai, um robusto sofá vinho de 3 lugares, seguiu, de carreto, pra casa da empregada. Eu não tive a mesma sorte. Fui doado para um carroceiro que apareceu na frente da casa. Mas, quando o infeliz ganhou dois fardos de papelão usado de uma fábrica de colchões, sem vacilar me tirou da carroça e me despejou aqui. Olha que ironia. Eu que nunca neguei descanso pro meu dono. Noites e noites em que, desprezado pela segunda patroa, ele vinha direto pra sala. Trazia uma bebida, puxava a mesinha e se sentava, para juntos assistirmos vários filmes. Até que adormecia sobre mim. Quantas gotas de whisky, cerveja, tequila… quantas lágrimas suas ficaram grudadas, por que não cravadas na minha pele.

Agora, minha realidade é bem outra. Estou há horas neste lugar estranho, de costas para uma mureta de jardineira, totalmente insensível. Divertimento? Nada de programas na TV, assisto apenas as cenas do trânsito. Deixo de ser decoração para estar exposto aos raios do sol, à mercê de qualquer vandalismo. Corro o risco de desbotar. Além da poeira que levanta desta calçada meio cimento, meio terra. Chi, logo vai chegar a noite, estou com medo. Quem será que vou abrigar? Torço para que não seja nenhum fumante. Sou alérgico ao cheiro de cigarro. Meu patrão me acostumou muito mal. Sempre me tratou com delicadeza e limpeza de primeira. O que será de mim? Como estão as nuvens no céu? Meio carregadas…chuvas próximas? Ei, espera. Está parando…, uma pick-up acabou de parar. E o motorista está me olhando. Parece interessado.

– “Venha… Meus revestimentos musculares ainda estão intactos. Passei só alguns momentos como um sem teto. Não vacile, leve-me já. Um pano molhado resolve.”

Ei, o cara está descendo da pick-up. Amarrou uma corda na caçamba. E vai se aproximando.

-“Venha, chegue mais perto. Pode examinar: nenhum rasgo. Vamos, descubra logo o meu diferencial, aqui na lateral esquerda: a etiqueta do Torrentano.”

Ôpa, ele tirou os óculos escuros e jogou dentro da cabine,… Tirou o boné…, o jaleco,,…a barba postiça? O que?

– “Julinho? É você, mesmo? Veio me resgatar? Não acredito? Como sabia, onde eu estava, desta vez?”

NOTA: Conto e foto por: Nando Cury

Imagens:
Cabeçalho (acervo pessoal)
Casal argumentando / Freepik
Capa Sofás vinho(acervo pessoal)

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