OUVINDO ADONIRAN BARBOSA
Filho de imigrantes italianos, e registrado como João Rubinato, Adoniran nasceu em Valinhos, SP, no dia 6 de agosto de 1910. Na década de 20 seus pais mudaram para Jundiaí, SP, depois para Santo André, SP, onde, para ajudar no sustento da família, trabalhou como tecelão, pintor, encanador, vendedor de tecidos, garçom e em outras atividades.
Nos anos 30, já morando na capital paulista, começou a compor músicas inspirado, em Noel Rosa e outros autores. Assim, iniciou suas participações em programas de calouros nas rádios, quando adotou o nome artístico de Adoniran Barbosa. O Adoniran que veio do nome de seu melhor amigo Adoniran Alves. E o Barbosa em homenagem ao cantor Luiz Barbosa, um de seus ídolos.
Entretanto, sua voz pequena e rouca lhe rendeu vários gongos. E era pouco valorizada numa época em que imperavam os timbres marcantes de Francisco Alves, Mário Reis e Orlando Silva. Pela sua insistência, em 1933 ganhou um contrato na Rádio Cruzeiro do Sul, como locutor e discotecário. Com pequenos cachês, passou por outras emissoras. Até, em 1941, se firmar na Rádio Record como ator cômico. Lá recebeu a valiosa parceria do produtor e redator Oswaldo Molles, e ficou por mais de trinta anos, interpretando irreverentes personagens criados por Molles, como o terrível e sábio aluno Barbosinha Mal-Educado da Silva, Giuseppe Pernafina, o motorista de táxi do Largo do Paissandu, Dr. Sinésio Trombone, o gostosão da Vila Matilde, Jean Rubinet, o autor de cinema francês e Charutinho, o malandro malsucedido.
Foi também ator. No cinema, seu melhor desempenho aconteceu no filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, na Vera Cruz. E participou como coadjuvante das primeiras telenovelas da TV Tupi, na década de 50.
Mas, vamos focar no Adoniran Barbosa sambista e compositor. Um artista boêmio e popular, que olhou e retratou os bairros e a cidade de São Paulo sob o ponto de vista dos personagens pobres e trabalhadores. Seu linguajar, com jeito muito peculiar de contar as histórias, misturava o sotaque dos imigrantes italianos do Brás, Mooca e Bexiga com o português cheio de erros clássicos dos habitantes de cortiços e malocas da cidade. Tudo calculadamente incorporado nas letras de suas canções. Criou suas principais composições andando pelas ruas, batucando numa caixa de fósforo.
A primeira grande oportunidade para compor surgiu em 1935, aproveitando os eventos de carnaval. Com a marcha “Dona Boa”, na parceria de J. Aymberê, venceu o Concurso Carnavalesco da Prefeitura de São Paulo desse ano. A gravação do fonograma de “Dona Boa” pela Columbia Records representou o primeiro sucesso do cantor e também compositor botucatuense Raul Torres.
Adoniran dividia suas noites entre participações em programas da rádio e presença nos bares paulistanos, como o Bar Bhrama da Avenida São João. Numa certa noite de boemia, Adoniran perdeu sua chave. Assim, para entrar em sua casa, não teve outro jeito senão acordar a mulher Dona Matilde, que ficou bem aborrecida. Em contrapartida, no dia seguinte nasceu mais um sucesso carnavalesco, junto com Osvaldo Molles. “Joga a chave”, na voz de Jorge Goulart, foi a música de abertura do badalado LP “Rio Quatrocentão” no carnaval de 1964.
Em 1969, quando a TV Tupi organizou seu I Festival de Músicas de Carnaval, a canção “Vila Esperança”, de Adoniran Barbosa e Marcos César, surgiu como favoritíssima e acabou ficando com o segundo lugar. “Vila Esperança, foi lá que eu passei O meu primeiro carnaval Vila Esperança, foi lá que eu conheci Maria Rosa, meu primeiro amor Como fui feliz, naquele fevereiro Pois tudo para mim era primeiro Primeira rosa, primeira esperança Primeiro carnaval, primeiro amor criança.”
Quem tratava do cotidiano do povo sofrido, como Adoniran, acolhia também cenários tristes como na reflexiva “Bom dia tristeza” que ganhou letra de Vinicius de Moraes. E está no LP de Maria Bethânia, de 2007, gravado pela Biscoito Fino.” Bom dia, tristeza.
Que tarde, tristeza. Você veio hoje me ver. Já estava ficando até meio triste. De estar tanto tempo longe de você”.
Outra composição na mesma linha é “Iracema” que ganhou uma emocionante interpretação de Clara Nunes.” Iracema, eu sempre dizia. Cuidado ao travessar essas ruas. Eu falava, mas você não me escutava, não. Iracema, você travessou contramão”.
Em termos de projeção, Adoniran não seria tão conhecido se suas músicas não tivessem sido gravadas pelo conjunto Os Demônios da Garoa, que requintou suas composições, com arranjos instrumentais vibrantes e cativante interpretação vocal. Também é possível afirmar que Os Demônios da Garoa não teriam feito tanto sucesso se não tivessem gravado as canções de Adoniran Barbosa. O mais famoso álbum do conjunto, selado pela Chantecler em 1964, leva o nome de “Trem das Onze”. Ele teve 10 milhões de cópias vendidas e foi premiado com discos de Ouro e de Platina. De 12 canções que contém simplesmente 8 são assinadas por Adoniran. São elas: Trem das Onze, Saudosa Maloca, Prova de carinho, Conselho de mulher, Iracema, Abrigo de vagabundos, As mariposa e Samba do Arnesto.
“O Samba do Arnesto” inserido no famoso LP dos Demônios da Garoa, surgiu a partir de uma viagem que Adoniran fez com Nicola Caporrino, seu parceiro na canção. O tema foi inspirado numa situação que envolvia Nicola, mas acabou sobrando para seu amigo Ernesto Paulelli. A piada musical deu muito certo e virou “O Samba do Arnesto”.
“Trem das Onze”, a mais famosa de suas canções, conferiu a Adoniran o título de “o mais autêntico representante do samba paulista”. E foi também a mais gravada por outros cantores. Uma versão épica está na voz de Gal Costa num show ao vivo nos anos 70, chegando a fazer sucesso até na Itália. Uma linda versão atual é da surpreendente banda italiana Jazz Lag, da cidade de Monza. ”Não posso ficar nem mais um minuto com você. Sinto muito, amor. Mas, não pode ser. Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem, que sai agora, às 11 horas. Só amanhã, de manhã”.
Considerando seu lado espirituoso, bem humorado, escolhemos mais algumas canções de Adoniran que são muito especiais. Como a conhecida “Prova de carinho”, que Adoniran canta com Vânia Carvalho.” Com a corda mi. Do meu cavaquinho. Fiz uma aliança pra ela. Prova de carinho. Quanta serenata. Eu tenho que perder. Pois meu cavaquinho. Já não pode mais gemer”.
A canção “As mariposa”, traz uma simpática narrativa superego, com Adoniran surpreendente.” As mariposa quando chega o frio. Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá. Elas roda, roda, roda e dispois se senta. Em cima do prato da lâmpida pra descansá. Eu sou a lâmpida. E as muié é as mariposa. Que fica dando vorta em vorta de mim. Todas noite só pra me beijá”.
Nossa seleção de outras músicas especiais do Adoniran tem sambas de breque. Um composto por Adoniran se chama “Samba Italiano”. E é dedicado a uma certa Gioconda, a Gigi.” Piove, piove. A tempo che piove qua, Gigi. E io, sempre io. Sotto la tua finestra. E voi senza me sentire. Ridere, ridere, ridere. Di questo infelice qui”.
E inclui mais um samba breque do Adoniran, envolvendo novamente o seu amigo Nicola. É “Um Samba no Bixiga” que começa ansim: ”Domingo nóis fumo num samba no Bexiga. Na Rua Major, na casa do Nicola. À mezzanotte o’clock
Saiu uma baita duma briga. Era só pizza que avuava. Junto com as brajola.
Da parceria com Carlinhos Vergueiro, com quem Adoniran manteve uma grande amizade, nasceram algumas canções como “Torresmo à milanesa”, que tem uma ótima versão cantada por Clementina de Jesus, Adoniran e Carlinhos Vergueiro.
“O enxadão da obra. Bateu onze horas. Vamo simbora João. Vamo simbora João. O que é que você trouxe.Na marmita Dito. Trouxe ovo frito. Trouxe ovo frito. E você Beleza. O que é que você trouxe. Arroz com feijão. E um torresmo a milanesa. Da minha Tereza”.
Em 1978, aconteceu o encontro de Adoniran Barbosa com Elis Regina, numa sala da Vila Itororó, no bairro do Bexiga. Ali cantaram juntos: “Iracema”, “Um Samba no Bixiga” e “Saudosa Maloca”. Em 1980 a cantora incluiu a música “Tiro ao Álvaro”, de Adoniran Barbosa e Osvaldo Molles, no LP Elis da gravadora Odeon, seu último álbum de estúdio. ”De tanto leva frechada do teu olhar. Meu peito até parece sabe o quê? Táubua de tiro ao Álvaro. Não tem mais onde furar (Não tem mais). Teu olhar mata mais do que bala de carabina. Que veneno estriquinina. Que peixeira de baiano. Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver. Mata mais que bala de revórver”.
Adoniran Barbosa partiu em 1982, na capital paulista, aos 72 anos. No mesmo ano e cidade em que Elis Regina se despediu, precocemente, aos 36 anos, exatamente com metade da idade de Adoniran.
NOTA: pesquisa histórica, pesquisa musical e texto por Nando Cury
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