UM SOM DE VANGUARDA NO LIRA PAULISTANA
Na década especial de 80 tive a oportunidade de redefinir toda a minha concepção sobre a música, virando um eclético convicto. Um dos principais responsáveis por isso foi o Lira Paulistana, um porão-arena com 200 lugares – entre arquibancadas e almofadas espalhadas pelo chão – localizado na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, São Paulo.
Efetivamente, o Lira representou muito mais do que um palco de cineteatro que serviu para eventos. Foi uma arrojada entidade cultural. Lançou artistas, produziu, gravou e vendeu discos, marcou pontos de abertura e de convergência entre talentos da música, cinema e teatro.
Em termos musicais, o Lira abrigou e alavancou, sem exageros, sem querer ser “bairrista”, o que acontecia de mais inusitado em vozes e instrumentos no Brasil dos anos 80. Foi o epicentro da forte onda de Músicos, Cantores e Bandas, com produções independentes, uma grande maioria iniciando carreiras e pertencendo à denominada “Vanguarda Paulista” ou “Vanguarda Paulistana”.
Otávio Fialho (de pé à esquerda, em sentido horário), Mário Manga, Eliete, Bozo Barretti, Azael Rodrigues e Arrigo ( Arquivo pessoal de Eliete Negreiros)
Os artistas aportaram e fizeram sucesso no Lira. Depois, naturalmente, foram para espaços maiores da cidade, como o Tuca, o Teatro Arthur Azevedo, Sala Guiomar Novaes-Funarte, Teatros da USP, da GV, do Bixiga, salas do Centro, que eram frequentados pelo mesmo público interessado nesse “novo movimento musical”.
Sorte dos paulistanos e antenados como eu – um mero candidato a cantor e compositor – que então estudava harmonia na Travessia Oficina de Música da Rua Mourato Coelho, na Vila Madalena. Com os amigos Toni, Mônica, Félix, Ana e Ramina, colegas na Travessia, fundamos o Piruá, uma banda vocal que chegou a tocar no próprio Lira, em eventos na Praça Benedito Calixto e em alguns bares de Sampa.
Destaco que essa fase inesquecível, passada no Lira Paulistana, foi inspirada pela impressionante criatividade e experimentação musical de marcantes protagonistas. O espaço sem luxo e conforto do Lira contrastava com os eventos programados por sua competente equipe. As apresentações no Lia Paulistana eram divididas em três categorias: temporada (de quarta a domingo); especial, nas segundas e terças, e alternativos que aconteciam nos finais de semana à tarde, nas sextas e sábados à meia noite.
Enquanto buscávamos um lugar na arquibanca ou com a sorte de achar uma almofada, controlávamos a ansiedade de espera pelo começo de cada show. Olhávamos para aquele palco simples, com pano preto ao fundo, e instrumentos já montados.
Nas noites regidas pela irreverência lá estavam Premê, Língua de Trapo, Itamar Assumpção e Banda Isca de Polícia.
Se fosse no “clima” regional, pintavam as cantigas do cantador baiano Elomar, a voz agudíssima da matogrossense Tetê Spíndola,a voz encantada da cearense Marlui Miranda, Paranga e Passoca.
Para uma moderna poesia caprichosa, feito história cantada e falada, íamos assistir o incrível Grupo Rumo.
Nos finais de semana de novidades apareciam Luli e Lucina, Vânia Bastos, Cida Moreyra, Vange Leonel, Laura Finochiaro, Eliete Negreiros e outros. Ainda de selo independente, havia o som criativo e atonal de Arrigo Barnabé e a Banda Sabor de Veneno.
A música instrumental também era coisa do outro mundo. Sessions com a banda Pau Brasil de Nelson Ayres, Roberto Syon, Hector Costita, Paulo Bellinati, Rodolfo Stroeter e Azael Rodrigues. Ricas performances dos grupos mais novos como D´Alma, Papavento (Gil Jardim e outros), Freelarmonica, Uakti, Divina Encrenca, Acarú, Pé ante Pé, Bocato e Banda e outros.
A cada show eu levava pra casa um LP, com encarte autografado, e guardava dentro o folder do evento. Nas manhãs de sábado, era sagrada uma esticada até o Canto Livre, loja-universo especializada em selos independentes, que ficava no começo da Avenida São João. Alí passava horas a garimpar mais artistas de álbuns alternativos, vindos de todos os cantos do Brasil. E sonhando com seus prováveis shows, em noites especiais no Lira Paulistana.
Apesar do jeito simples da “casa de espetáculo” tudo era muito bem organizado, através do Centro de Promoções Artísticas Lira Paulistana.
A equipe era liderada por Wilson Souto Jr, conhecido como Gordo, seus sócios chico Pardal e Plínio Chaves mais Eduardo Schiavone, responsável pela iluminação e outros.
De pé: Wilson Souto Junior (Gordo), Riba de Castro, Plinio Chaves, Edu Schiavonne, Fernando Rozo Perez. Sentados: Fernando Alexandre, Marcia, Chico Pardal, Tiago Araripe
Fonte: Lira Paulistana e a vanguarda paulista – Um documentário musical de Riba de Castro [ESTREIA NOS CINEMAS – 15/11] vanguardapaulista.com.br
NOTA 1: Esta crônica está associada ao podcast 38 do canal Semônica, do podcastmais.com.br
NOTA 2: Pesquisa histórica, pesquisa musical, texto, voz, canto em Nego Dito de Itamar Assumpção, por Nando Cury
NOTA 3: Cantiga de Bendizer (Elomar), interpretada pelo Grupo Piruá
NOTA 4: Estrela do Indaiá (Marlui Miranda) interpretada pelo Grupo Piruá, composto por Mônica Parmigiani, voz, violão e cello; Toni Liutk, voz, violão e baixo; Nando Cury, voz, violão aço, violão de 12, viola caipira; Felix Fink, percussão)
NOTA 5: Vanguarda Paulista (também Vanguarda Paulistana) nome dado a um movimento cultural brasileiro ocorrido na cidade de São Paulo entre 1979 e 1985. O rótulo foi criado por jornalistas e críticos musicais da cidade, tanto por seu aspecto de vanguarda, quanto, no caso da segunda denominação, como referência a um dos tempos onde os experimentalistas apresentavam suas obras: o Teatro Lira Paulistana, situado na rua Teodoro Sampaio, bairro de Pinheiros, e que posteriormente transformar-se-ia em selo musical e editora.
Fonte: Paulo Varella – fevereiro 18, 2024, arteref.com
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